18/09/2009

Lembranças do Guarujá.

Era uma destas madrugadas insones, em que havia resolvido arrumar suas gavetas do escritório.
Se mudara há alguns meses, mas ainda pendentes, certas organizações de papéis.
Remexeu umas caixas em prateleiras, eis que um de seus livros tombou e caiu aberto no chão...o que fez com que o billhete aparecesse:
"TE BEIJARIA DOS PÉS A CABEÇA, SE ASSIM PERMITIDO....
SEM PRESSA, SEM RISCO, SEM TEMPO, SEM SER CONTIDO
FARIA VOCÊ VOAR E SEM DESTINO, SENTIR ALGO DIVINO,
COISA SEM TIPO, AMOR SEM PRÓLOGO, SENTIR SEM DESATINO
SÓ VOCÊ PRA MIM, SEM FIM, SEM ACABAR, SEM TEMPO PRA FECHAR....
ATÉ VOCÊ ME PEDIR PRA PARAR, EXAUSTA, CONTIDA,
SEM AR E SEM PRESSA...COM A BOCA SECA DE TANTO SENTIR E DE TANTO PEDIR."
Fechou os olhos e sorriu. E foi então que se lembrou dele, o amigo da escola primária, que muito admirava, o qual acompanhara o desempenho durante toda a infância e que, reencontrara anos depois, já adulto, em uma festa de casamento, no litoral de São Paulo.
Ela, usava o vestido elegante, azul royal. Ele, terno cinza chumbo, com risca de giz. Noite de sexta-feira, verão, casamento de amiga em comum, os dois conversavam animadamente.
Ele estava noivo, mas sua noiva se ausentara a trabalho. Ela, namorando, e o namorado por impedimento do tempo chuvoso nublado na estrada, decidira retornar e não comparecer a festa, pois era de outra cidade mais longe.
Cumprimentos após, trocavam lembranças infantis escolares. Eis que a festa chegava quase ao fim, e eles dediciram se despedir dos noivos. Ele cansado, tinha que pegar novamente a estrada a caminho de casa na capital paulistana. Ela, iria dormir na casa da praia, na mesma cidade onde se passava a festa, Guarujá.
"Porque você não dorme em casa, e vai de manhã, mais descansado, pegar a estrada após o café?" Sugeriu ela.
"Não gosto de incomodar", ele respondeu, "e depois, não vim preparado para dormir fora."
"Bobagem, pode usar as roupas do meu irmão, que tem o mesmo tamanho que você, e depois, amigos são para isto." Retrucou a moça cordialmente com um sorriso, o enlaçando pela cintura.
"Está bem, eu aceito, mas só se continuarmos nossa conversa com um café", por fim respondeu o rapaz.
E foi assim, noite adentro, após se instalarem na casa, que beirava a faixa de areia, onde das imensas janelas, era possível mirar as ondas do mar e escutar suas idas e vindas com som peculiar. Fluía a conversa sobre toda a infância, amigos, amores, dores, descobertas.
Estavam na sala do "home theater", sentados no chão, entre almofadas, quando o rapaz, pegou no sono, primeiro. Ela então, o conduziu lentamente até o bicama, e o deitou gentilmente, cobrindo-o com uma fina colcha e se retirou para seu quarto, mas não antes, de olhar bem no rosto adormecido do rapaz e fixar na memória aquele momento único...que homem lindo! Que criança curiosa ele era, e que menino atraente, bonito, desde a infância, apesar de amigo, mexia com ela quando menina, tímida que era, jamais havia mencionado isto. E agora mulher, sabia, que o atraente tinha algo a haver com "desejo", mas também que a admiração era diretamente ligada ao "intelecto" que sempre estava em primeiro plano...
Já em seu quarto, algumas leituras após, adormeceu. Horas haviam se passado, quando finalmente acordou. Lentamente desperta, desceu as escadas, a procura do amigo, no mesmo local onde o havia deixado na noite anterior. Para sua surpresa, tudo arrumado, como se ninguém lá estivesse e tampouco houvesse tocado em nada. Caminhou apressadamente por todos os aposentos da casa, e nada do rapaz, ou de qualquer sinal de que estivesse ali.
"Sonhei?" Pensou. E no seu quarto, o vestido azul royal repousado sobre a poltrona clara.
Ao quase se dar conta, de que, talvez tivesse sonhado, olhou em sua mesa de cabeceira, o livro que lia durante a madrugada, o qual, ao invés do marcador de costume, apresentava pequeno e branco papel na recente página lida.
Eram palavras, com a "ex-caligrafia" do amigo de infância, letras agora, de um homem feito, palavras que surpreendem e afetam a mente, o mesmo bilhete, que agora apertava contra o peito enquanto suspirava e que, hoje, relia mentalmente, sem precisar ler.
Palavras escritas, jamais ditas, olhares não trocados, mas imaginados, sensações que não se efetivaram, silenciadas pela distância entre dois seres, e seus compromissos amorosos da ocasião.
Imaginação fértil, tragada pelo sono, pelo cansaço.
Vivenciar desejos não exteriorizados e expressá-los em letras, é uma arte ímpar.
A compreensão destes, pertence só aos verdadeiros e íntimos cúmplices.
Não soube mais nada do rapaz na época. Nem mesmo, porque silenciou tal emoção conjunta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário